segunda-feira, 23 de junho de 2014

OS CAÇADORES DOS RELVADOS

Não há nada a fazer,



GANHAR É A ÚNICA COISA QUE INTERESSA!

PERDER É O MESMO QUE MORRER!



Não há nada a fazer,

abandonamos tudo para vermos as imagens em movimento de 22 homens, a correrem uns contra os outros, a caírem, a darem encontrões, a darem pontapés num objecto esférico.

De vez em quando jogadores e sedentários espectadores são levados ao delírio ou ao desespero pelo desenrolar do jogo. Por todo o País (Mundo) coladas aos écrans, exultam ou resmungam em uníssono.


Dito assim parece uma estupidez. Mas, quando se lhe toma o gosto, é difícil resistir-lhe, e falo por experiência própria.

Os atletas correm, saltam, chutam, deslizam, batem, lançam, agarram—e até dá arrepios ver fazer aquilo tão bem.

Mas não é com tais artes que a maior parte de nós ganha o pão de cada dia.

Há estrelas desse desporto que ganham 1000 vezes mais que o ordenado do Presidente.

São heróis nacionais.

 Porquê exactamente?

Quase todos os principais desportos são associados a uma nação, ou a uma cidade, e transportam consigo elementos de patriotismo e de orgulho cívico. A nossa equipa representa-nos – o sítio onde vivemos, a nossa gente – contra aqueloutros indivíduos de um lugar diferente, povoado por gente desconhecida, quem sabe se hostil.

(é verdade que os “nossos” jogadores, na sua maior parte, não são realmente de cá. São mercenários que de plena consciência desertaram de cidades rivais a troco de muito dinheiro)

Os desportos de competição são conflitos simbólicos, tenuemente disfarçados, ideia que nada tem de novo.


Há mesmo treinadores que afirmam:


GANHAR É A ÚNICA COISA QUE INTERESSA!



PERDER É O MESMO QUE MORRER!


Por isso a publicidade utiliza os chavões do costume:

Quando vencemos, é a equipa toda que vence—não uma pessoa, e a equipa somos todos nós.

A relação entre desporto e combate é assumida com toda a clareza.




Os fãs do desporto (fã é abreviatura de “fanático”) tornaram-se conhecidos pela prática 

do confronto físico e da agressão, quando não mesmo do homicídio, quando os provocam por a sua equipa ter perdido, ou quando os impedem de festejar a vitória da sua equipa, ou quando acham que o árbitro cometeu uma injustiça.


 A primeira-ministra da Grã-Bretanha viu-se obrigada, em 1985, a denunciar o comportamento arruaceiro, embriagado, de fãs da selecção inglesa de futebol que atacaram um contingente de apoiantes da selecção Italiana  só porque estes tiveram o descaramento de incitarem a sua própria equipa.

Dezenas de pessoas morreram na derrocada de bancadas. Em 1969, ao cabo de três desafios de futebol rijamente disputados, tanques de S. Salvador atravessaram a fronteira com as Honduras e aviões salvadorenhos bombardearam portos e bases militares hondurenhos. Nesta “guerra de futebol” as vítimas contaram-se por milhares.
  
No Afeganistão, guerrilheiros tribais jogavam pólo com cabeças cortadas aos adversários (conta-se que as tropas coloniais Portuguesas fizeram o mesmo em Angola)


E há 600 anos, onde é agora a cidade do México, havia um estádio em que nobres impecavelmente vestidos assistiam a competições entre equipas fardadas. 

Ocapitão da equipa que perdia era decapitado e as caveiras de anteriores capitães derrotados exibidas na ponta de estacas – um estímulo certamente mais imperioso ainda do que ganhar um jogo para receber um avultado prémio pecuniário.
  
Suponha o leitor que, por acaso, liga o televisor e depara com uma competição em que não faz qualquer espécie de investimento emocional _ por exemplo um jogo de futebol Myanmar-Tailândia. Como é que decide por quem vai torcer? Mas espere aí: porque tem de torcer por alguém? Porque não se limita a apreciar o Jogo?

A maior parte das pessoas tem dificuldade em assumir uma postura distanciada deste tipo.

Queremos participar na disputa, sentirmo-nos parte duma equipa. Essa sensação pura e simplesmente nos arrebata e lá estamos nós a berrar “Força Myanmar!”


Umas vezes torcemos pelo mais fraco. Outras vezes, vergonhosamente, chegamos a transferir a vassalagem do perdedor para o ganhador quando resultado começa a ficar claro.

O que procuramos é a vitória sem esforço. O que queremos é ver-nos envolvidos numa espécie de guerra pequena, segura e vitoriosa.

Em 1996, Mahmoud Abdul-Rauf, na altura post nos Denver Nuggets, foi suspenso pela NBA. Porquê? Porque se recusou a levantar para o toque obrigatório do Hino Nacional.

A Bandeira Americana representava para ele um “símbolo de opressão”, ofensivo da sua fé muçulmana.

Tocar o hino num acontecimento desportivo”é, temos que reconhecer, uma tradição perfeitamente idiota no mundo de hoje”

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Os  mais antigos eventos atléticos devidamente organizados que se conhecem datam de há 3500 anos, na Grécia pré-clássica. Durante os primitivos jogos Olímpicos, um armistício suspendia todas as guerras entre as cidades gregas. Os jogos eram mais importantes do que as guerras.

Os homens actuavam nus: eram proibidas mulheres na assistência.


No sc VIII a.C. os Jogos Olímpicos consistiam em provas de corrida (muita corrida), saltos, lançamento de objectos (incluindo dardos) e luta (por vezes de morte). 

Embora nenhuma destas disciplinas fosse um desporto de equipa, a verdade é que elas são perfeitamente essenciais para os modernos desportos de equipa.

E são também essenciais para a caça de baixa tecnologia.

A caça é por tradição considerada um desporto, desde que o caçador não coma o que caça – um requisito mais fácil de cumprir para os ricos do que para os pobres.

Desde os primeiros faraós que a caça está associada às aristocracias militares.

 Os percursores do futebol, do hóquei e desportos afins eram com desdém apodados de “jogos da plebe” e considerados alternativos à caça—já que aos jovens que trabalhavam para viverem estava vedada a prática da caça.

As armas das primeiras guerras terão sido os instrumentos de caça.

Os desportos de equipa não são meros ecos estilizados das antigas guerras. São também a satisfação de um quase esquecido anseio de caçar.

Dado que as nossas paixões pelos desportos têm raízes tão profundas e estão tão disseminadas, o mais natural é que estejam gravadas em nós – não no cérebro, mas nos genes.

A espécie humana tem centenas de milhar de anos (a família humana vários milhões de anos de idade). Só durante os mais recentes 3% temos levado uma vida sedentária— baseada no amanho da terra e domesticação de animais— e é só este período que consta da nossa história escrita.


Antes desse tempo a caça – só para comer nunca por desporto— é a ocupação vitalícia de todos os machos fisicamente aptos.

Os rapazes na pré-adolescência apanham pássaros e pequenos mamíferos com arcos e flechas. Chegados à idade adulta, são peritos no arranjo de armas, na captura, matança e amanho da presa e no transporte da carne para o acampamento.

O primeiro êxito na caça de um mamífero grande assinala a entrada do jovem na maioridade.

Na sua iniciação fazem-lhe incisões cerimoniais no peito e nos braços e esfregam-lhe uma erva nos golpes, para que uma vez sarados, formem uma tatuagem desenhada. É como se fossem condecorações de campanha — basta olhar-lhe para o peito para se ficar com uma ideia da sua experiência em combate.


De um emaranhado de marcas de cascos, ficamos a saber quantos animais passaram, as suas espécies, sexos e idades, se algum coxeava, há quanto tempo passaram, a que distância já estão. Há animais novos que podem ser laçados em campo aberto, outros com fundas ou bumerangues, ou pelo simples arremesso de pedras, com força e pontaria.


Os animais que ainda não aprenderam a ter medo dos homens deixam-nos aproximar e matá-los à paulada. A maiores distâncias, para presas mais astutas, atiramos lanças ou disparamos setas envenenadas. Às vezes temos sorte e, numa manobra hábil e rápida, fazemos uma manada cair numa emboscada ou despenhar-se de um rochedo.


Entre caçadores o trabalho de equipa é essencial. Se não quisermos espantar a caça temos que comunicar por sinais. Pela mesma razão precisamos de controlar as emoções; o medo e o alvoroço são igualmente perigosos. Temos em relação à presa uma atitude ambivalente. 

Respeitamos os animais, reconhecemos parecenças com eles, identificamo-nos com eles. Mas, se pensamos demasiado na sua inteligência ou devoção pelas crias, se temos pena deles, se vamos demasiado longe no reconhecimento das afinidades com eles, esmorece a nossa dedicação à caça, levamos para casa menos comida, e aí é o nosso bando que pode estar em perigo. Temos uma obrigação de estabelecer uma distância emocional entre nós e eles.

A prova mais evidente do êxito do estilo de vida dos caçadores-recolectores é que se estendeu por seis continentes e se prolongou por milhões de anos.


Passadas 10.000 gerações em que a matança de animais foi a nossa defesa contra a fome, as mesmas tendências continuam dentro de nós. E ansiamos por pô-las em prática, mesmo que seja por interposta pessoa. Uma das maneiras é pelos desportos de equipa.

Uma parte de nós sente a nostalgia de se juntar a um pequeno grupo de irmãos numa aventura arriscada e intrépida. Isso é bem visível nas brincadeiras e nos jogos de computador tão populares entre os rapazes na pré-puberdade e na adolescência.


As tradicionais virtudes masculinas— taciturnidade, desembaraço, modéstia, rigor, consistência, profundo conhecimento dos animais, trabalho de equipa, gosto pelo ar livre — reflectem um comportamento de adaptação dos tempos dos caçadores-recolectores. Continuamos a admirar estes traços de carácter, apesar de já quase termos esquecido porquê.

Além do desporto poucos mais escapes há. Nos nossos adolescentes masculinos ainda conseguimos detectar o jovem caçador, o aspirante a guerreiro – a saltar de uma casa para outra pelo telhado, a andar de moto sem capacete, a armar zaragata pela equipa vencedora nos festejos de fim de jogo. Na ausência duma mão que os domine estes instintos antigos podem dar para o torto.


Penso na força desses instintos caçadores e preocupo-me. Tenho medo que o futebol não seja escape suficiente para o caçador moderno, ataviado de fato-macaco, jeans ou fato e gravata. Penso naquele antigo legado que faz com que não exprimamos os nossos sentimentos, guardando uma certa distância emocional em relação àqueles que matamos, e aí o jogo perde parte da graça.

De um modo geral, os caçadores-recolectores não representavam qualquer perigo uns para os outros; porque as suas economias eram normalmente saudáveis (muitos tinham mais tempo livre do que temos hoje); porque, como nómadas que eram tinham poucos haveres, quase nenhuns roubos e pouca inveja; porque a ganância e a arrogância não só eram consideradas um mal social, mas também próximas da doença mental; porque as mulheres tinham um poder politico real e, por natureza, tinham uma influência estabilizadora e mitigadora antes que os rapazes lançassem mão das setas envenenadas; porque quando eram cometidos crimes graves – por exemplo um homicídio --, o grupo julgava e aplicava a pena colectivamente.


Muitos caçadores-recolectores organizavam-se em democracias igualitárias. Não tinham chefes. Não havia hierarquia política ou institucional para subir, mesmo em sonhos. Não havia ninguém contra quem se revoltassem.

Portanto se nos sentimos encalhados a centenas de séculos da época em que gostávamos de ter vivido – se (sem que a culpa seja nossa) damos connosco numa era de poluição ambiental, hierarquização social, desigualdade económica, armamento nuclear e perspectivas em queda, com emoções do Plistoceno, mas sem as salvaguardas sociais do Plistoceno --, talvez nos perdoem o nosso futebolzinho! 



tirado de: Biliões e Biliões de Carl Sagan

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