sábado, 21 de junho de 2014

ARTE E LOUCURA

A vida futura que terminamos de criar é precocemente antiga bem como uma paixão triste. Algo como: “os beijos não são importantes, no teu tempo nem haverá beijos”






ARTE E LOUCURA 

“Esse amanhecer

mais noite que a noite.”

Estas são algumas das palavras iniciais

Muitos versos proféticos encontramos nós ali. Porém, com a desventura de uma profecia anunciada em nosso próprio tempo.

Sim! Somos testemunhas de o tempo não ter mais tempo de sê-lo e ainda assim, sê-lo multiplicado, multifacetado.

"a côr-do-som" Dumoc. acrílico sobre tela 


Temos na cabeça a tristeza do tão recentemente perigoso século vinte que amanhece e rebenta na sombra do crepúsculo dos deuses, louvando iconografias e registrando barbáries.

A vida futura que terminamos de criar é precocemente antiga bem como uma paixão triste. Algo como: “os beijos não são importantes, no teu tempo nem haverá beijos”


É este o mundo sentido, que acorda no escuro e se entristece como uma criança doente, o mundo onde noite é noite e manhã é falta de chão, falta de ar. Estas fortunas deliciosas do ocidente: um grande medo capaz de abater teus vizinhos.


Fomos assim, quase que naturalmente, tentando organizar tudo, catalogando aracnídeos e cineastas, escritores e crustáceos. Fomos assim, seres prodigiosos do nosso tempo 

"sonhos" Dumoc. acrílico sobre tela


documentando guerras e pesquisando pestes, na medida em que também as fabricávamos.

“os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insectos.”

"IO lago" Dumoc. acrílico sobre tela

Mais lancinante que a perda da noção dos limites de tempo é a confusão que ainda faremos com real e abstracto. Não nos enganemos, não conseguiremos nos dar as mãos.

As cidades se tornaram um palco estranho para manifestações como fossem febre nas narinas da gente. Trafegando docemente para o caos das paredes onde se chocam e se comunicam. Arte.

As narrativas clássicas foram abortadas em semáforo sinalização e silício, um labirinto de mitos e elementos químicos perigosos como a própria poesia. Enfim a cidade é algo hermeticamente fechado em seu próprio signo cada vez mais impossível de compartilhar.

Todas as leituras possíveis, apesar de assim serem, não se tornam tão lógicas, tampouco doutrinas conseguirão separar trigo de joio. E os fractais não explicarão a falta de simetria na visão do globo.

A cidade é um tempo de promiscuidade de sentidos, a vida é uma orgia obrigatória.


"cidade" Dumoc. arte digital



“os automóveis parecem voar.”

Precisamos nos sujar com esta experiência, pois há quem tenta se limpar e higienizar os espaços com consciências tardias.
Sim! O que não está nos autos não está no mundo!

Vejamos outras palavras de Michel Foucault:
“a percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu espaço deixa aparecer algum lugar de recusa, a partir da qual se denuncia uma fala como não sendo linguagem, um gesto como não sendo obra, uma figura como não tendo direito algum lugar na história”

Pois que temos uma ilusão que nosso tempo é mais pulsante que todos os outros, o que mais podemos aguardar do passado que nos parte ao meio, posto que nosso tempo, com efeito, não é assim tão radiante.
Lembremos então que matarmos a história não é um privilégio burguês tampouco um capricho, se fez necessário primeiramente.


"luz visível" Dumoc acrilico e outras tecnicas s/tela


A voz que protagoniza nosso fluxo seria mesmo um esforço sub-humano comparável talvez apenas ao da primeira besta fera que habitou o mundo, mas, não a última.


Faz-se a ilusão também de concluir ciclos. Perdoem-me os místicos, mas, a natureza sempre nos foi indiferente desde que, sempre para nós tornou-se apenas o agora.

O aqui se torna fora, externo de origens que cumprimos de descumprir.

São destas recusas que se fabricam todos os refugos da humanidade, todos os monturos de algo que não pode se tornar manifesto a menos que como uma indecência.

Assim são condizentes com tudo que os produziu.
Existem nichos nas produções de refúgios aqui mesmo neste oeste velho, mundo novo.

Existem muitas iniquidades com as quais se fazem eldorados, serras peladas e cristandades.

Este verbo carne, cerne de nossas preocupações, é uma divindade pela qual distribuímos beijos e pancadaria, no entanto, funciona também como a melhor utopia, ao menos em comparação com as citadas anteriormente.

O maior dos estoicismos é permanecer na linguagem, tão ténue quanto o amianto que nos abriga e nos intoxica. Ofegante como a arritmia da substância que se perde ao sopro ou ao gesto.

Ser algo que participa da engenharia dos significados é como deixar o mundo é como alienar-se. O homem não se relaciona mais com o sentido, excepto quem pensa que ele é apenas como uma árvore ou um rio, mesmo estes tem uma relação com os objectos rio e árvore serem apenas objectos rio e árvore.

"GPS" Dumoc. acrílico sobre tela


A transcendência demora e não dispomos de paciência para ela. Então que ela fique para as almas pacientes. Um sujeito decente e coeso não se incomoda como o mau cheiro de sua garganta em câncer, um devir mal resolvido de objecto rio árvore.

Não se trata mais de afastar do estado natureza, trata se apenas de uma aproximação do estado natural da vontade, deliberar instintos sem afectar a história.


Forjar sintaxe, afectar o mundo. Estar nele e não aceitar os fatos.

 "no Religion" Dumoc. óleo sobre tela


Sigamos com outras palavras:

“penso que devemos ser homens, em primeiro lugar, e depois súbditos. Não é desejável cultivar pela lei o mesmo respeito que cultivamos pelo direito. A única obrigação que tenho direito de assumir é a de fazer a qualquer tempo aquilo que considero direito.” 

Estes dizeres contem uma paixão que não se nivela com a doença e com as concessões por vezes indignas que nos vemos obrigados a fazer quando algo nos tolhe outro algo por julgar sua legitimação e impuser a constituição de quaisquer poderes. 

Henry David Thoreau nos presenteia com a parte alegre deste relato, mas, não menos séria. Esta é uma espécie de desobediência pura, e parece ser uma convicção inabalável!

Mais uma vez a ideia de estar no mundo e praticar isto dignamente, não deixa de ser contraditória. Mas, nada mais, de certa forma, significa estar fora dele.

É lógico e plausível crer que um ponto de vista vindo de qualquer afastamento merece atenção ao menos por se supor tal argumento potencialmente isento.

Não observamos bem que estamos todos à beira do mundo em circunlóquios intermináveis tentando entrar em estruturas que já recusamos sem sequer saber por quê.

Há algumas almas violentas e leves o suficiente para reconhecer a resistência aos sistemas. Creio que aí temos um elemento chave: isto tem se tornado cada vez mais emancipador e menos opressor.

"tryp" Dumoc. acrílico sobre tela


Não podemos, no entanto, dizer com certeza que estas páginas de uma nova cultura de resistência, morando na casa da subjectividade e sentando à mesa delirante das nuances de um tempo que ainda estamos por cumprir, ficarão para a posteridade como algo melhor ou pior para as pessoas.

Contudo o direito ao que Thoreau se refere é algo apenas conectado ao desejo e à vontade, e as democracias sobre as quais desenvolve seu trabalho “a desobediência civil” são evidentemente falhas, mas, o ser humano sem lugar na história a não ser o lugar da recusa, não possui os elementos para querer construir novas sociedades. Do lugar da recusa pode-se apenas gritar.

Particularmente, preferimos gritar com cores timbres e metonímias.

Vontades representações e revoltas as preferimos em pantomima. As palavras que instituem um povo e seu ideal de soberania são pomposas e cívicas demais.

O civil deve tomar conta do delírio e guardar a subjectividade e isto é política!

Exemplificamos isto com um fragmento da apresentação dos textos de Stela do Patrocínio por Viviane Mosé:

“é a noção de doença mental que vai, na modernidade, mediar a relação entre razão e loucura uma relação definida pela falta de comunicação”.

auto retrato Dumoc. óleo sobre tela

Se tomarmos estas linhas a rigor, podemos dizer que não é mais privilégio dos loucos esta incomunicabilidade. Que isso se torna marca do nosso tempo.
Muitas sanidades e muitos sanitaristas caíram por terra, isto tem lá seu lado muito profícuo, e assustadoramente belo!

A linguagem torna-se um aparato próprio de uma experiência única, com seus sujeitos aptos a lidarem com a manifestação de suas individualidades anónimas e gritantes.
O tempo todo podemos ler nos indivíduos sua procura por códigos, apenas códigos que podem os fazer semelhantes ao outro.

Nosso método de comunhão é partilhar sem medo todas as individualidades insuportáveis de um ser solitário, capaz de dinamitar-se a si próprio como quem dinamita sozinho a ilha de Manhattan.

A arte, portanto, é um ofício essencial para evidenciar tamanhas mazelas do ser contemporâneo que não fala com ninguém, mas, fala para todos.
Ironicamente as experiências se tornam comuns quando vemos num único ser, todas as nuances de humanidade aparentemente perdidas, serem evocadas de uma sala de espectáculos.

É a mesma promessa que havia nos templos


"Cruz Amarela" Dumoc. acrílico sobre papel


A ânsia que acometeu os iluministas quando conceberam a enciclopédia permanece em nós como o gesto primário e violento de expressar o desejo de ser compreendido.
As referências filosóficas e científicas não nos livram da fome, seja de verdades ou de feijão.

Assim o mundo se constitui como o palco das misérias que os séculos escamotearam.
Mesmo querendo ignorá-las ainda as seremos com aflição e hipocrisia.
Consideremos então a hipótese absurda das misérias serem honestas, e ainda mais, tirarmos dela seu teor messiânico. Sem acrescentarmos o fim como ideia prevalente.

O verbo, carne cerne. O verbo carnificina. O verbo vaticínio. Não este, o verbo podre!
Repartido em crimes e dramaturgia e folhetim da vida que existira.

O verbo do chão, o verbo de debaixo do chão, o verbo das mortes!

Vejam este verbo Antonin Artaud:

“as leis e costumes vos concedem o direito de medir o espírito.”

"caipirinha" Dumoc.acrílico sobre tela


Deixemos que prossiga:

“essa jurisdição soberana e terrível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais.” 

Mais adiante:

“sem insistir no carácter perfeitamente genial das manifestações de certos loucos, na medida da nossa capacidade de avaliá-las, afirmamos a legitimidade absoluta de realidade de todos os actos que dela decorrem”. 

E para terminar:

“os senhores só tem a superioridade da força.” 

"double-vision" Dumoc. acrílico sobre tela


A realidade contra as forças do engenho é nosso heroísmo.
Somos exactamente quem somos e dispensamos a culpa e desferimos dos braços o gesto.
O gesto que nos mata e que nos mantém vivos.


"lesbian cowboy" Dumoc. acrílico sobre tela


É uma lealdade ao corpo, lealdade à letra que nos inscreve o viver. Com seus açoites inevitáveis, este é um tempo de crueldade, tempo de arte em mostrar as vísceras.
Tempo de a arte abolir os censores de nosso juízo. 

"cowboy lesbian" Dumoc. acrílico sobre tela


Carne barro soprado, carne verbo cinza, sangue e outros fluidos.
A arte nos mostra o cheiro da morte semelhante ao cheiro da vida. Os milagres devem sempre estar na sala da ciência, mas, a pujança mora na linguagem, este signo torpe que forja a própria vida para que ela não trate de se matar.

De outra forma o verbo ainda é a promessa.
Esta promessa para Stela do Patrocínio é a promessa do não querer
Melhor dizendo, o querer não querer, tão próprios ao tempo de recusas!

“Eu não queria me formar
Não queria nascer
Não queria tomar forma humana
Carne humana e matéria humana

Não queria saber de viver
Não queria saber da vida
Eu não tive querer
Nem vontade pra essas coisas… 

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam prá nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnaram me desencarnaram me reencarnaram
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pró gás pras paredes pró teto
Ou prá cabeça deles e pró corpo deles.” 

"firework" Dumoc. acrílico sobre tela

Stela diz do alheamento próprio que não querem de nós. Realmente nos querem olhando pra cabeça deles e pró corpo deles, com uma forma humana um tanto quanto representada por uma semelhança divina, portanto, instituindo a própria forma como molde.
Stela tem razão nos formamos de gases, a forma nos é um mistério além do conteúdo e que seja gás!

Como essa missão de sentir o que é estar no mundo necessita às vezes respirar fora dele, manter-se fora dele, em gases ou em águas turvas, cito o poeta mineiro, Frederico Eymard.

“Dentro do mundo
Oro
Sem palavras
Externo ao próprio mundo 

Tempo nosso
Instrumento
Em que posso
O firmamento.” 

"light" Dumoc. acrílico sobre tela


Rezemos sim, para ganhar as substâncias extra corpóreas, ainda sem algodões nas narinas neste pacto que sela o silêncio da linguagem e seu mistério gaseificado e introduzido no mundo como o veneno e como o bálsamo.
Seja o cânhamo ou sândalo que estragamos em trivialidades, que os unguentos não nos estraguem a loucura e a arte.


“esse amanhecer mais noite que a noite.” 

"amanhecer praia da ursa" Dumoc.acrilico sobre tela