Salman Rushdie escreve carta para Deus
Como sei que grande parte dos leitores deste blogue gostam destas controvérsias, pois entre os enigmas levantados pela fronteira da ciência e os levantados pela existência, venha o Diabo e escolha, não resisti a reproduzir a carta que foi dirigida a Deus por Salman Rushdie, assim como neste intróito incluir tanto Deus como o Diabo e deixar, o leitor amigo, escolher livremente.
Aqui vai ela.
Aqui vai ela.
Caro Deus,
Se Você existe, e se é como O descrevem — onisciente, onipresente e, acima de tudo, onipotente —, com certeza não irá tremer em seu assento celestial ao ser confrontado por um simples livro [“Os Versos Satânicos”] e seu escrevinhador, não é? Os grandes filósofos muçulmanos com frequência discordam em relação à Sua relação precisa com os homens e os atos humanos.
Ibn Sina (Avicena) argumentava que Você, por estar muito acima do mundo, limitava-se a tomar conhecimento dele em termos muito gerais e abstratos. Ghazali discordava. Qualquer Deus “aceitável ao islã” conheceria em minúcias tudo o que acontecesse sobre a superfície da terra e teria uma opinião a respeito.
Bem, Ibn Rushd não aceitava isso, como Você há de saber se Ghazali estivesse certo (e não saberá se quem tivesse razão fosse Ibn Sina ou Ibn Rushd). Para Ibn Rushd, a opinião de Ghazali tornava Você muito parecido com os homens — com os homens com suas discussões tolas, suas dissensões mesquinhas, seus pontos de vista triviais. Imiscuir-se nos assuntos humanos estaria abaixo de Você, e O diminuiria. Por isso, é difícil saber o que pensar.
Se Você é o Deus de Ibn Sina e Ibn Rushd, nesse caso nem sabe o que está sendo dito e feito neste exato momento em seu nome. No entanto, se Você é o Deus de Ghazali, e lê os jornais, vê a TV e toma partido em disputas políticas e até literárias, não acredito que pudesse fazer objeções a “Os Versos Satânicos”, ou a qualquer outro livro, por mais ignóbil que fosse. Que espécie de Todo-Poderoso poderia se deixar abalar pela obra de um homem? Ao contrário, Deus, se porventura Ibn Sina, Ghazali e Ibn Rushd estivessem todos errados e Você não existisse, também, nesse caso, Você não teria problemas com escritores e com livros.
Chego à conclusão de que minhas dificuldades não são com você, Deus, mas com Seus servos e seguidores no mundo. Uma famosa romancista me disse, certa vez, que tinha parado de escrever ficção durante algum tempo porque não gostava de seus admiradores. Fico a me perguntar se Você compreende a posição dela. Obrigado por Sua atenção (a menos que não esteja prestando atenção: Veja acima).
Salman Rushdie
(A carta foi retirada das páginas 276 e 277 do livro “Joseph Anton — Memórias”, de Salman Rushdie, Editora Companhia das Letras, tradução de Donaldson M. Garschagen e José Rubens Siqueira).